Dezembro, 2025

A nova Convenção UNCITRAL sobre os Negotiable Cargo Documents (NCD): enquadramento jurídico e implicações práticas

A nova Convenção UNCITRAL sobre os Negotiable Cargo Documents (NCD): enquadramento jurídico e implicações práticas

Marta Borges
Advogada, professora convidada e candidata a Doutoramento

A futura Convenção UNCITRAL sobre Negotiable Cargo Documents (NCDs), cujo texto final foi aprovado em julho de 2025, tem prevista a sua aprovação para a Sessão 47, agendada de 15 a 19 de dezembro em Viena de Áustria.  representa um dos desenvolvimentos mais relevantes dos últimos anos na harmonização jurídica do comércio internacional. O seu objetivo principal é criar um regime uniforme para documentos de transporte negociáveis, físicos ou eletrónicos, assegurando a sua autenticidade, transmissibilidade e validade jurídica em diferentes jurisdições. Esta convenção surge num momento em que a desmaterialização documental e a digitalização das cadeias logísticas se tornaram essenciais para a segurança, a eficiência e a competitividade global.

Os “Negotiable Cargo Documents” incluem documentos unimodais e multimodais emitidos com cláusulas de negociabilidade, como “à ordem”, que permitem a transferência de titularidade das mercadorias através da mera transferência do documento. São instrumentos fundamentais no comércio internacional, especialmente em operações que dependem de financiamento bancário ou em que o controlo documental determina o levantamento físico da mercadoria. Contudo, apesar da sua importância, o seu enquadramento jurídico tem sido historicamente fragmentado e dependente de práticas privadas, regras de associações internacionais e legislações nacionais divergentes.

É neste contexto que a UNCITRAL desenvolve a nova convenção, visando assegurar requisitos funcionais uniformes, incluindo (i) autenticidade documental, (ii) unicidade, (iii) integridade, (iv) efeitos jurídicos dos endossos, e (v) equivalência plena entre formatos físicos e eletrónicos, desde que observadas garantias técnicas adequadas. A UNCTAD tem apoiado o processo, destacando o impacto económico da digitalização documental e os benefícios associados à redução de custos e à mitigação de riscos operacionais.

Um dos elementos centrais deste desenvolvimento é o papel do FIATA Multimodal Transport Bill of Lading (FBL) e da sua versão eletrónica, o e FBL. Estes títulos já eram reconhecidos na prática como documentos negociáveis, mas dependiam exclusivamente das regras -da FIATA. A futura convenção altera esta realidade ao conferir ao FBL/eFBL um enquadramento jurídico internacional uniforme, aumentando a segurança na sua utilização. Para os transitários, bancos e seguradoras, isto representa um passo decisivo para a consolidação da confiança na documentação multimodal negociável, especialmente em ambiente digital.

No setor dos transportes, os impactos são particularmente relevantes. A convenção não substitui regimes existentes como as Regras de Haia-Visby, CMR, CIM ou Montreal; atua de forma supletiva, aplicando-se apenas quando as partes optam por utilizar um NCD. Esta compatibilidade reforça a integração entre diferentes modos de transporte. Ao mesmo tempo, a clarificação da negociabilidade documental e da transmissão de titularidade reduzirá litígios frequentes relacionados com endossos irregulares, conflitos entre titulares e incertezas sobre o momento em que se transmite o controlo da mercadoria.

Além disso, o reconhecimento explícito de NCDs eletrónicos incentiva a evolução tecnológica do setor marítimo, aproximando-o de práticas já adotadas com Bill of Lading, smart contracts, plataformas blockchain e sistemas portuários digitalizados. A possibilidade de uma circulação documental totalmente eletrónica contribuirá para reduzir atrasos, custos administrativos e riscos de fraude documental — problemas persistentes no comércio global.

Nos contratos internacionais de compra e venda, especialmente nos Incoterms CIF e CIP, a convenção reforça a previsibilidade. Nestes regimes, o vendedor deve entregar ao comprador um documento negociável que lhe permita reclamar a carga no destino. A harmonização dos requisitos dos NCDs aumenta a confiança de bancos e traders na documentação utilizada, simplifica operações de crédito documentário e facilita a gestão do risco contratual. A clarificação do valor jurídico dos documentos também reforça a determinação do momento da transmissão do risco e da propriedade, áreas frequentemente sujeitas a disputas quando a documentação é ambígua ou tratada de forma divergente entre jurisdições.

Apesar destes avanços, permanecem desafios. A adoção pelos Estados pode ser gradual, criando fases de assimetria regulatória. Operadores logísticos, transitários e armadores terão de adaptar procedimentos internos, rever modelos contratuais e investir em sistemas eletrónicos compatíveis com os requisitos técnicos previstos. A formação profissional será um elemento essencial para assegurar uma transição segura e eficiente.

A Convenção UNCITRAL sobre NCDs representa uma reforma estruturante para o comércio internacional, reforçando a segurança jurídica, promovendo a transição da digitalização para o documento eletrónico  criando um ambiente mais previsível para operações multimodais. Para operadores portugueses, este é o momento de acompanhar a evolução do texto, preparar a adaptação interna e posicionar-se na vanguarda de um sistema logístico, cada vez mais “digital” e integrado.

Para mais informação, artigo publicado na Revista da APAT nº 153 – Junho 2024

Disponível em www.apat.pt

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